A Arte como Ferramenta para a Ação Política.

Modelos de trabalho e algumas ideias sobre
Residências de Arte Contemporânea em
relação à comunidade e a processos sociais.
Jorge Sepúlveda T. y Guillermina Bustos.
Traduzido por Paola Fabres.

Este artigo for incluída no livro
Residencias de Arte Contemporáneo Social Summer Camp
Villa Alegre – Chile. Febrero 2017

[Versión en español]

As metáforas sobre a aprendizagem trazem com elas um tom de aventura e desafio. Se forem honestas, falarão também de disciplina e de método. Porque aprender não é apenas embarcar em uma determinada travessia, mas é também percorrê-la de forma consciente e constante.

Acreditamos que a aprendizagem possa ser um impulso que busca pelo seu objeto – que o encontra, que o constrói, que o enfrenta e que o modula –, às vezes através de ações, às vezes através de discursos. E além do mais, pouco à pouco, todo o conhecimento que se gera permite que aprendamos sobre o modo de conhecer; aprender nos leva a aprender sobre como aprender.

Todas essas reflexões não apareceram de repente. Foi tudo uma larga sucessão de tentativas, de ajustes, de propostas fracassadas comprovadas pela própria experiência cotidiana e de pequenas frustrações que convertemos em motivações para novas tentativas.

Nisso, nosso cúmplice Samuel Beckett nos acompanha com a citação: “Sempre tentaste. Sempre falhaste. Não importa. Tente outra vez. Falhe outra vez. Falhe melhor.” Encontramos no nosso trabalho uma relação direta entre aprender e fazer: o fazer como um método de experimentação, não um método de certezas; o aprender como um sistema de prova, não de validação.

Da mesma maneira, e com a mesma intensidade, confiamos em Diógenes de Sinope. Citado de memória, disse algo como: “qualquer um de nós, pessoas comuns, ao observar algo com atenção durante um determinado tempo, entenderá o funcionamento do mundo”.

<<arte contemporânea, usos possíveis>>

Devido a tudo isso, e desde o início, tínhamos muitas perguntas e decisões para serem definidas.

Quando começamos a desenvolver o sistema de residências em formato summer camp, nos perguntávamos: é possível renunciar às nossas habilidades já adquiridas? É possível renunciar à autoridade e construir um sistema horizontal de relações entre pessoas em residência? É possível um trabalho efetivamente colaborativo em arte contemporânea? É possível que artistas, curadores, investigadores e críticos, de contextos diversos, construam relações afetivas e efetivas em um período breve de tempo”? (1)

Nossa aposta é a de que “a arte contemporânea é, sobretudo, um sistema de interrogação da realidade” (2). Só nos restava definir as condições de todas essas perguntas, suas pretensões e a forma de se aproximar disso que chamamos de realidade. Para se acercar das respostas dessas perguntas é que nos dedicamos às residências.

Suspeitávamos que a arte contemporânea tivesse uma potência rara e às vezes perturbadora. Queríamos imaginar a possibilidade de seu funcionamento, apagar o peso do seu nome e os privilégios a ele associados. Pensávamos em uma instância que possibilitasse deixar para trás (pelo menos provisoriamente) essa condição hierárquica da arte, fazendo-a circular entre nós mesmos como uma ferramenta a mais entre todas as ferramentas da cultura, possibilitando seu compartilhamento com os saberes de uma comunidade e construindo, sempre, complementações.

Fomos entendendo a produção de arte contemporânea não como um objeto (um o quê) mas como uma relação possível (um quando, um onde ou um como) (3) e descobrimos que ela tem um tempo e um lugar. Descobrimos também que é preciso saber quando falar de arte; quando recorrer ao poder de sua denominação legítima. Agora, estamos advertidos de seu uso comum (de seu sentido comum) e de sua condição pretendida de manto sagrado: aquele que cobre de valor o fato, as ações, os objetos e as práticas.

A arte contemporânea nos parece um campo de conhecimento sem axiomas (ela até os constrói, mas para em seguida desmontá-los). Trata-se de um campo que se alimenta de outros campos, colocando-os em cheque e usando-os disfuncionalmente (a partir desses outros parâmetros) para obter outras rentabilidades. Acreditamos que a arte contemporânea é um campo de conhecimento que alcança sua coesão por meio da reiteração crítica de seus próprios procedimentos, da modificação com o outro e da revisão sobre si mesma, às vezes redundante apenas por verificar a contingência dessa reiteração.

Partindo dessa suspeita afirmativa, optamos pelo uso estratégico (e não obrigatório) de seu nome. Quando entendemos que sua condição hierárquica poderia ser interrompida momentaneamente, enfatizamos a importância de se atentar à metodologia; aos processos de trabalho. Foi a partir dessas pretensões que temos identificado e colocado em funcionamento a possibilidade de um método, inserido em um contexto isento, que não a favorece, mas que a desafia e que a exige de formas não antes previstas.

Evitamos ao máximo o uso de definições e a formação de glossários. Preferimos noções vagas a conceitualizações e estruturações discursivas. Escolhemos o modo de diálogo ao invés do discurso. Isso, porque o discurso reproduz uma ordem e ajusta os contextos à sua vontade. Por outro lado, a conversa ou o diálogo permite o trânsito entre um tema e outro, perde o objeto e às vezes até seu objetivo. É esse tom que nos interessa, porque é nele que se revela o que não é dito e o que necessita de nós mesmos de outros modo.

Assim, ficamos disponíveis para avaliar tudo novamente, para ordenar o que sabemos de uma maneira que até agora desconhecemos. Porque o mundo é do tamanho que podemos imaginar, e esse contato aberto com os outros no obriga a ampliá-lo, a deixar de pensar no outro como uma versão sobre si mesmo, ou seja, nos obriga a pensar no outro como um outro, efetivamente.

<<arte como método de conhecimento>>

Nesse sentido, a arte nos tem servido como um método de conhecimento… Mas o que exatamente a arte contemporânea nos permite conhecer? Através dela, podemos nos aproximar da estruturação dos recursos simbólicos e dos materiais que instalam, naturalizam e enraízam uma determinada ordem no espaço social. Podemos saber como uma ordem específica local pretende sua universalidade e, por vezes, consegue se impor cotidianamente. Podemos dissecar essa realidade, esse «tudo», de aparência orgânica, para descobrir como se constrói sua relação intrínseca bem como seus canais e seus afluentes.

Como sugere Judith Butler, sabemos que “o natural se constrói como aquilo que carece de valor; e passa a assumir esse valor à medida que assume seu caráter social, ou seja, ao mesmo tempo em que a natureza renuncia sua condição de natural” (4). Algo parecido ao que ocorre com a noção de autoridade de Lacan.

Essa é a nossa curiosidade e a nossa motivação, como num filme de mistério ou em uma série policial. Queremos ir, de forma coletiva, buscando entre as anedotas, entre os gestos, entre as formalidades e as rotinas algo que nos permita entender juntos a estrutura dos hábitos, dos costumes, das expectativas, das predisposições, do que imaginam que possam ser as preferências e dos limites estabelecidos, no sentido de entender as razões morais e práticas que nos regem, no sentido de determinar se é ou não necessário reforçar esse limite, empurrá-lo, modificá-lo ou deixa-lo cair em esquecimento.

Pensamos um uso da arte contemporânea como uma pedagogia que atue num duplo sentido, ou seja, em ambas direções, de forma que não seja necessária a distinção entre quem aprende e quem ensina. Por isso, buscamos gerar um confiança a favor de nos conhecermos, a partir de um contato direto e crítico.

<<escolhemos a arte, não o trabalho social>>

E então… Porque falamos de arte e não de trabalho social, por exemplo? Primeiro porque não viemos modificar a realidade, não viemos suprir o papel do estado ou da religião. Atuamos no sentido de entender a forma na qual a realidade foi construída, no sentido de identificar quais são as repetições sustentadas durante o tempo e de entender como funcionam os regimes de poder e a maquinaria de valor.

Assim, não é nosso objetivo atuar como suplentes da organização social, como pretexto para uma associação vantajosa, como um facilitador da responsabilidade cívica, nem como um estabilizador de relações. Isso, que façam os outros. Nossa intenção é determinar quais são os elementos em tensão em cada comunidade, descrevê-los, torna-los visíveis e suportar essa tensão. Suportar em um duplo sentido da palavra, de aguentar e de dar suporte.

Devido à isso, o uso da arte contemporânea como ferramenta nos permitiu a exibição pública das decisões políticas cotidianas, muitas vezes imperceptíveis, que atuam por trás dessa configuração retórica do repertório cultural (5). E parte de seu uso é também avaliar as condições dessa exibição, dessa cena e de sua cenografia, de seus papéis ativos e obsoletos. Perguntamos por sua instalação e sobrevivência.

Numa época de automatismos, queremos interromper o pensamento organizado pelo juízo, aquele que quando se define se pretende estático e atemporal, aquele que organiza ontologicamente (e objetualmente) o sujeito. Pretendemos habilitar a discussão argumentada dos fatos, provar outras definições que nos permitam entender, investigar e construir possíveis relações causais. Em resumo, queremos habilitar essa possibilidade de dissidência que permite sustentar a tenção constitutiva da aprendizagem.

Nosso interesse não está posto na tração histérica das grandes audiências, buscando seduzi-las através da empatia com uma sensibilidade pré-determinada; mas em um trabalho às vezes imperceptível de intervenção no cotidiano. Mais do que chamar atenção, queremos compartilhar tensões.

<<residência como espaço de exceção>>

E como fazemos tudo isso? Nas residências de formato summer camp habilitamos um espaço de exceção que funcionasse como uma instância de imersão, para desaprender e voltar a aprender, para voltar a ver e buscar essas outras formas de relação; um espaço onde a convivência grupal nos expõe e nos exige.

Esse espaço gera uma obrigação voluntariamente assumida que nos força à criação de um conjunto provisório de termos onde se confundem idiomas e construções identitárias (nacionais e individuais), onde compartilhamos experiências exitosas e falidas, onde o diagnóstico do contexto se constrói sobre a persistência da observação e da capacidade de argumentação.

Para que tentemos enfrentar e apurar nossos preconceitos e fórmulas preconcebidas em relação a quem se encontra fora do campo especialista.

Através de jornadas de debate com os residentes e compartilhamentos em comum, tentamos suspender o interesse individual, para utilizar a arte contemporânea não como como uma forma de expressão, nem como uma enunciação sensível, mas como uma justificativa para o diálogo que busca outras coisas além das particularidades.

Essa não é apenas uma questão de formato na relação entre indivíduos, não é uma questão formal mas de intenção e ênfase estrutural. Frequentemente, a falha humana está associada ao Sistema que induz o erro. Essa ideia de arte que usamos gera espaços nos quais podemos tratar de entender e diagramar esse sistema, e é uma das maneiras que temos para entender a sua influência e a sua eficácia na formação de sujeitos, mas também suas dificuldades e debilidades em fazê-los autônomos.

<<como pensamos uma residência>>

Como “o jardim dos caminhos que se bifurcam” esta questão nos leva a duas novas perguntas: por um lado, como pensamos uma residência de arte? E por outro, como pensamos a relação entre essas comunidades?

Quando, no final de 2009 e junto com Ilze Petroni, pensávamos pela primeira vez como seria possível uma residência – baseando-nos nas experiências que conhecíamos – a primeira ideia que descartamos foi a noção de uma residência como ateliê deslocado. Este modelo em que uma pessoa viaja de um ateliê a outro implica em uma repetição das mesmas eficiências (materiais e simbólicas) pelas quais esse mesmo residente foi selecionado. Esse formato não implica em nenhum desafio e em nenhum risco. Nem para os residentes, tampouco para os organizadores. E ainda, acaba excluindo a experiência que surge a partir do contexto e dos saberes locais nos quais estão inseridos.

Esse tipo de residência fica limitada a questões técnicas, formalmente afetadas por um estereótipo editorial do local. Também sabemos que os ofícios e as disciplinas não tem valor nem positivo nem negativo, não são um valor por si só. O que confina e restringe suas oportunidades é a reiteração cega de seu uso histórico e de seu contexto. Modificar a maneira com a qual nos relacionamos com uma ferramenta nos habilita a possibilidade de materializar um outro imaginário.

<<formação dos grupos de trabalho>>

Isso também implicou modificar o sistema de seleção dos participantes para não reproduzir as distorções do Sistema da Arte, recusando todo o prestígio e privilégio que com ele vem junto, toda a especulação de valor e as condutas simbólicas patrimoniais. Assim pretendíamos fugir da instalação da autoridade do sistema nas suas bordas, da instituição que reproduz a instituição, de quem tem cabeça de martelo e vê tudo como se fossem pregos.

A partir desses raciocínios, buscamos simplificar o formulário, diminuir a quantidade de perguntas e, principalmente, eliminamos a exigência do envio de um currículo (de uma trajetória) e de um portfólio de obras (das realizações e dos objetos) para nos centrarmos nas pretensões (no statement) e no modo de organizar o conhecimento prévio. Pensamos em formar um grupo a partir das capacidades disponíveis e de suas possíveis interações. Novamente, pensamos não no acúmulo, mas em seu uso.

Pensamos em selecionar os participantes a partir da análise do discurso: isso é, fazer algumas preguntas intencionalmente ambíguas, revisar a argumentação e os conceitos utilizados, mas principalmente verificar a qualidade da mentira; nesses três termos entendemos que se põe em jogo a capacidade de estruturar uma ficção, de organizar um contexto e executar ações sobre ele. É isso que necessitamos.

<<um plano de ação>>

Montamos, então um plano de ação: nos reunirmos todas as manhãs para tomar um café da manhã sem pressa, conversar e avaliar criticamente tudo que passou no dia anterior, inventar possibilidades, ensaiar coreográficas e criar hipóteses falsas. Assim pretendíamos separar o desenvolvimento do nosso trabalho da padronização do discursivo e das estratégias de (auto)exotização que as mesmas comunidades (frequentemente) vão aprendendo de seus interlocutores.

Pensávamos em como evitar a solução fácil, a primeira resposta que vem em mente, o primeiro raciocínio; esse que todos pensariam, aquele que aparece de forma fácil e automática. Essa primeira solução é mais um mecanismo de um modo de conhecimento que do que estamos buscando conhecer.

O trabalho grupal colaborativo nos permitiu criar dinâmicas de trabalho baseadas nessas contradições, nessas incompreensões próprias de estar vendo algo pela primeira vez, com suas complexidades e resistências. A gente se propôs, mais do que produzir ou reproduzir uma máquina de categorização, a criar um sistema de conhecimento coletivo (ajustado e exigido pelos residentes) para administrar a ignorância.

Pensando nessas questões, foi possível detectar uma relação complementária entre Tensão e Coesão. Ou seja, a coesão nos faz fortes, a tensão nos faz inteligentes. Se uma se predomina sobre a outra, ambas desaparecem. Então, conhecer é também uma capacidade política. Saber é um acordo momentâneo, que deve ser sustentado e revisado constantemente.

A qualidade desse acordo está baseada na nossa capacidade de nos tornarnos vulneráveis e de incluir e coordenar diversidades frente à predominância de uma homogeneização sedutora e objetualista. E a qualidade desse acordo se põe em cheque e se executa no planejamento, ao ser colocada em prática e na estruturação de suas consequências a médio prazo.

<<a questão econômica>>

Mas tanto desejo de liberdade e de envolvimento tem um custo econômico e financeiro. É recorrente que para o financiamento das residências a maioria dos gestores busquem a captação de verba a partir de financiamentos públicos. Isso acaba implicando, simultaneamente, em dois problemas.

Por um lado, na não continuidade das iniciativas, já que na maioria das vezes não se consegue um financiamento regular. No melhor dos casos, não é possível recorrer aos mesmos fundos anos seguidos, inabilitando, assim, a criação de um programa de trabalho a longo prazo.

E por outro lado, implica também numa limitação da autonomia editorial, que se vê afetada já que o dinheiro sempre vem com condições. Afetado pelos requerimentos burocráticos específicos incluídos nas bases (ou seja, os critérios explícitos e implícitos desses subsídios); e afetado pelas tendências da moda e do espetáculo das políticas públicas sobre arte e cultura.

Como resolver isso? A primeira decisão foi difícil: teríamos que cobrar pelas participações nas residências. Naquela época, e até hoje, a grande parte dessas atividades eram gratuitas para o residente, seja porque se destinam bolsas aos participantes, seja porque essas participações são pensadas como uma premiação pela trajetória ou por projetos específicos. Isso distorce a ideia de convocatória de trabalho para uma convocatória de concurso ou competição.

Nós decidimos criar um orçamento colaborativo, formar provisoriamente uma cooperativa de trabalho que reúne o seu orçamento através de cotas de participação que cobrem os residentes. Os participantes se autofinanciam (quando possível) ou são financiados pelas suas próprias instituições locais de seus lugares de origem, através da concessão de cartas de convite para a gestão de fundos. Isso corrige, parcialmente, uma possível distorção por exclusão ocasionada por motivos econômicos.

Com esse orçamento, podemos cobrir nossos custos diretos (hospedagem e café da manhã) e também os custos de investigação do tema e o trabalho prévio de produção (que normalmente inicia 6 meses antes da realização da residência). Mas principalmente, esse orçamento colaborativo nos permite manter processos de investigação de longa duração (como é o caso de Villa Alegre que já dura 7 anos), bem como a autonomia editorial que desejamos. Assim, o dinheiro não se torna um problema por ele mesmo, senão uma ferramenta para a capacidade de fazer.

<<sobre modelos de trabalho>>

Desde janeiro de 2010 até agora, tem surgido e se consolidado outros modelos de residência de arte contemporânea, que temos acompanhado e estudado para buscar compreender suas motivações e seus rendimentos, para constituí-las como interlocutores válidos com os quais podemos contrastar nossas próprias motivações, investigações e rendimentos. Para integrar seus descobrimentos e suas produções de noções ou reforçar nossas decisões.

Por enquanto temos claro quais desses modelos não queremos ser e as razões para não sê-los: não somos um albergue de artistas, nem um retiro espiritual, nem uma reunião de amigos, nem um grupo de autoajuda, nem um coworking, nem uma excursão VIP pela periferia. Esses modelos instalam e replicam os hábitos, os costumes e as eficiências individuais no público.

Não é nossa atuação nem nossa preocupação a construção de uma carreira ou de uma estratégia, a autovalidação ou a mútua validação, a contenção suave baseada no marketing emocional, na construção de marcas ou estilemas, a padronização produtiva e a homogeneização (fordista ou pós-fordista). Nem o exotismo, nem a autoexotização ou a discriminação positiva. Nada disso.

Não queremos, não podemos. De tal maneira temos carregado ideologicamente nosso trabalho, não é a imagem senão o imaginário. Ou seja, para nós, o imaginário é todo esse repertório de noções possíveis, a forma de se enlaçar, de se afetar mutuamente e de se organizar hierarquicamente, onde umas predominam e as outras suportam sua narrativa. Um imaginário é uma fábula e sua confabulação.

O uso da ideia de imaginário que propomos é a resposta coletiva à obrigação de sentido que individualmente sentimos, e que nos parece lógica e crível porque resolve os problemas no mesmo plano em que os instalou. (6)

<<Intervenção no Espaço Público e Trabalho com a Comunidade.>>

Então, como realizar tudo isso? Como estabelecer a ponte entre essa comunidade em formação e a comunidade que nos recebe? Como fazer visíveis nossas ferramentas e nossas disponibilidades? De início, teríamos que quebrar o gelo, fazer o primeiro contato e deixar ver, é que optamos pela interrupção total da rotina, a produção de um choque, de um estranhamento, a instalação de um fenômeno, algo mais ou menos como a “aterrizagem de um ovni”, todos esses procedimentos próprios das intervenções no espaço público. Os artistas colocavam à prova suas capacidade, às vezes reproduzindo algumas fórmulas já testadas, outras elaborando a partir do que o próprio contexto oferecia, dificilmente desapegados de sua condição de autores.

Por isso sabíamos que corríamos o risco de sermos perseguidos pela codificação da arte, de acabarmos reduzidos às bordas da sua impermeável autonomia, de nos convertermos nos “estranhos e deslocados” (o freak show), enquanto ao nosso redor se construíam as paredes do cubo branco, traçavam as linhas que determinavam o cenário, dando a fronteira invisível de onde termina a arte e onde começa o espectador, atônito mas passivo.

Para os residentes, isso é uma ameaça mas é também um desejo. Porque esse código, essas paredes e esse cenário, todos esses limites são convenções estereotipadas que o artista usa para se mostrar consciente e preocupado, por outro lado esses limites acabam por constituir o papel do artista, por contê-lo, por favorecê-lo, por defini-lo e defendê-lo frente a todo o exterior (frente à comunidade e para além do campo de conhecimento).

Tínhamos que ir com cuidado. Essa forma de fazer-se visível também corre o perigo do confinamento no espetáculo, como uma novidade efêmera que logo é esquecida. Pão para hoje, fome para amanhã.

Em cada verão, nos primeiros anos que voltávamos para Villa Alegre, tínhamos que começar tudo do zero, retomar o primeiro contato novamente, recordar aos vizinhos quem éramos e porque estávamos lá. Queríamos saber o que acontecia quando saíamos de lá, depois que cada residência se acabava, saber o que ocorria com todos os conhecimentos que eram construídos coletivamente. Queríamos saber como seguiam usando todo o conhecimento que tínhamos aprendido e construído juntos. Nossa ideia era poder dar seguimento às experiências e aos sintomas (na comunidade e nos próprios residentes).

Parte desses questionamentos estão relacionados a qualidade dos fatos e a sua continuidade. Começamos a perguntar como poderíamos converter em cidadãos provisórios de Villa Alegre, como nos engajar para participar ativa e politicamente da vida dos vizinhos. Isso nos obrigou a ser rápidos, precisos e econômicos. Também a prever algumas situações, à projetar planos de médio e longo prazo. Ser cidadão é um esforço e um exercício, constante e metódico.

Um exercício que requer afirmações e certas renúncias. Isso no levou progressivamente a diluir a ideia de autor, a atuar em manada, a projetar algo como uma assembleia crítica de proposições, a sustentar essas discussões que prolongavam até as madrugadas que muitas vezes podiam parecer inúteis e repetitivas, mas que acabam sendo a base do afeto social que nos mantém juntos e unidos.

A gente quis, como grupo, colocar à disposição a capacidade de imaginar outra organização do mundo, de habitar conjuntamente a dúvida, de trabalhar juntos a esperança e a expectativa, a ultrapassar, antes de mais nada, as pequenas frustrações cotidianas. Optamos pelas estratégias de trabalho de base, do contato um a um, de possibilitar uma forma ativa de perda de tempo, através da qual os objetivos, a efetividade e suas pretensões possam ser adiadas, suspendidas momentaneamente.

Decidimos nos dedicar no trabalho com o outro e não para o outro, de forma que nos tornávamos cúmplices dos diagnósticos e das decisões, coautores de uma lenta revolução.

Desde então, a cada ano, nos juntamos com as pessoas da comunidade para fazer lanche juntos, comer chancho en piedra e mote con huesillos, para compartilhar um mate, nos convidarmos à nossa casa provisória, aos nossos churrascos, às nossas festas e a conhecer nosso trabalho, compartilhar memórias, pensar sobre o presente e preparar o futuro. De fato, nosso método é estabelecer longas conversas sobre o possível e sobre o improvável. Juntos.

<<consequências desejadas>>

Finalmente, o que acontece com as pessoas depois de uma residência? Nossa experiência e o contato que mantivemos com a comunidade de Villa Alegre, assim como com os residentes, durantes esses 7 anos, nos apontam várias coisas.

Na comunidade, a partir da residência, que realizamos a cada fevereiro, acaba ocorrendo como consequência um evento social e cultural onde as pessoas, que não se encontram cotidianamente, seja pelo trabalho, seja pela distância, voltam a se encontrar a cada ano. Se criou uma expectativa e uma curiosidade em relação as pessoas que chegam, seus sotaques e suas ideias. Cada ano, seguido de um breve discurso inicial, o vinho e a torta abrem espaços para conversas indagativas, para o resgate de memórias e anedotas, os vizinhos contam aos novos residentes a respeito de quem participou e esteve ali antes deles. Essas lembranças todas, as risadas e a música instala o clima no qual estaremos submetidos nos próximos 12 dias. Os vizinhos são os novos anfitriões, seletivos e intrigados, que relatam e exageram para seduzir os residentes recém chegados. O trabalho político de cada dia continua.

Os residentes dos anos anteriores vivem (e às vezes sobrevivem) essa experiência de muitas maneiras. Sua produção artística se vê afetada, muitos desenvolvem por meses ideias de obras que surgem casualmente a partir de rascunhos de trabalho; se formam e se separam coletivos de artistas; se iniciam e terminam relações de trabalho, bem como relações emocionais e pessoais. Se abrem a ideias, se geram amizades e ódios. O que nunca ocorre, é a indiferença.

Mas talvez, o mais relevante para cada um de nós, residentes e coordenadores, é que tudo o que vínhamos sabendo se reorganiza. Tudo aquilo que não querias assumir, te enfrenta pessoalmente e te pede respostas urgentes. Nossa tarefa tem sido acompanhar todos esses processos, da amizade ao trabalho. Nas residências nossa pretensão tem sido o encorajamento, apressar as decisões que se demoram normalmente, porque é assim que nos amamos e nos exigimos. Nosso trabalho é ser impulso e contenção.

 

Jorge Sepúlveda T. y Guillermina Bustos
Coordinadores de Curatoría Forense – Latinoamérica

 

Referências

  1. Petroni, Ilze & Sepúlveda T., Jorge. 2010. Armar Campamento. El formato Summer Camp en las residencias de arte contemporáneo. Artigo disponível em: https://curatoriaforense.net/niued/?p=803
  2. Petroni, Ilze & Sepúlveda T., Jorge. 2011. Ninguno de nosotros es tan inteligente como todos nosotros juntos / texto de presentación. Artigo disponível em: https://curatoriaforense.net/niued/?p=1320
  3. Petroni, Ilze & Sepúlveda T., Jorge. 2013. Del objeto de arte a la relación de arte (contemporáneo). Artigo disponível em: https://curatoriaforense.net/niued/?p=2062
  4. Butler, Judith. (2002) Cuerpos que importan. Sobre los límites materiales y discursivos del <sexo>.   Em Taylor Diana & . Estudios Avanzados de Performance.
  5. Bustos, Guillermina. 2016. El arte contemporáneo como método de investigación; metodología, procedimientos y análisis de casos. (Tesis Magister en Arte, mención Artes Visuales). Universidad de Chile. Santiago de Chile.
  6. Essa questão é interessante porque na relação entre indivíduo e imaginário não está claro o limite sobre cada um, poderíamos dizer que um indivíduo participa de um imaginário da mesma maneira que o imaginário o constitui como indivíduo.

  7. Bustos, Guillermina & Sepúlveda T., Jorge. 2016. Es difícil decir que no pensamos en una pedagogía de la acción. Artigo disponível em: https://curatoriaforense.net/niued/?p=2631

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